As vítimas nós conhecemos, mas quem são os verdadeiros vilões dessa história?

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A pandemia da COVID-19 e seus impactos sociais.

O ano de 2020 chegou ao Brasil como uma grande lupa em cima da desigualdade e todas as expressões da questão social que nos afligem desde os primórdios da nossa construção enquanto um país. O nome do problema deveria ser “o novo coronavírus”, mas bastou a má gestão da saúde coletiva, para ganhar diversas feições.

A crise sanitária, somada as crises política e econômica tornaram um caos aquilo que já era perturbador. Lidar com uma nova doença, de fácil contágio e em muitos casos letal, deixou de ser o grande monstro, abrindo espaço para a acentuação da pobreza; do desemprego e da precarização do emprego; da insegurança; das violências; além de algo muito mais triste, o desdém à vida, sobretudo das camadas mais carentes e vulneráveis, por uma parte da população que não respeita as medidas de segurança, conforme as orientações dos organismos de saúde, o que é legitimado constantemente pelo discurso das principais figuras contemporâneas da política no Brasil.

Para as mulheres, os impactos são exponenciais. Simone de Beauvoir citou em meados do século XX: “Nunca se esqueça, basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Sua teoria se mostra na prática, nesse momento, de forma perversa. Apesar dos grandes avanços no campo do feminismo pela conquista de direitos, a crise aponta para as grandes fragilidades e a abissal desigualdade de gênero, classe e raça, que permanecem vívidos na sociedade, com ênfase na esfera do trabalho.

Essa constatação se baseia nos dados de diversas pesquisas realizadas nos últimos 4 meses e publicadas nos distintos meios de comunicação e também é facilmente vista ao nosso redor: aumento da violência contra a mulher; mulheres produzindo menos nos meios acadêmicos; mulheres sobrecarregadas em virtude da soma do trabalho não pago com o trabalho remunerado; mulheres exaustas, oprimidas e mortas, sim! No sentido literal, como apontam as estatísticas sobre feminicídios. Mulheres negras ainda são mais afetadas, uma vez que são, em maioria, alocadas em campos de subempregos, como o trabalho doméstico sem carteira assinada e outras atividades informais.

Eis a pergunta, “mas de quem é a culpa?”

A culpa eu gostaria de colocar no presidente, seria mais fácil vender esse peixe que já está espichado no mercado. Mas devo dizer a realidade, ele não passa de um mero personagem, muitas vezes coadjuvante, dentro desse filme de horror chamado neoliberalismo, que juntado ao patriarcado e ao racismo, são a energia vital do sistema capitalista. Não é tentando minimizar a má gerência do governo. O perfil neoconservador e ultraliberal, adicionado a incompetência e falta de humanidade do gestor federal, traz um grande reforço aos problemas sociais já citados, mas o grande vilão da história vem de longas temporadas.  

Enquanto modo de produção, o capitalismo se configura como o principal produtor de desigualdades, logo que se baseia na acumulação de riqueza e da propriedade por parte de uma classe, em detrimento da exploração de outra. Na busca pelo aumento da capacidade acumulativa e do lucro, esse sistema também é produtor de crises. Nesses cenários, também chamados de ciclos econômicos, procura se reinventar com base no aumento da exploração e exclusão das minorias.

Durante esse período da pandemia da COVID 19, as relações capitalistas estão sendo agudizadas, não tendo como ocultar sua mais assombrosa face. A classe trabalhadora, ou aquela que sequer acessa o mercado de trabalho, passa a ser ainda mais privada de acesso a políticas públicas e direitos sociais, que são primordiais no combate a doença, tais como moradia, alimentação, renda, condições para higiene, entre outros. Mesmo com o Sistema Único de Saúde universal e público, nem toda a população tem alcance de forma igualitária.

Dentre os seguimentos mais atingidos nesse processo, destacamos aqui as mulheres em contexto de prostituição popular, ou seja, aquelas que em situação de pobreza, exercem o trabalho sexual como forma de garantida da sobrevivência. De acordo com o acompanhamento realizado pela Pastoral da Mulher, Rede Oblata em Juazeiro/BA, é possível observar o alarmante crescimento da pauperização dessa categoria, que já era invisibilizada pelas políticas públicas e estigmatizada pela sociedade, muito antes do período pandêmico.

Em diálogo constante com o público, por meio de atendimentos virtuais, ouvimos os gritos de mulheres, que vivem o paradoxo do risco a exposição a contaminação pela doença, e a precisão de sustentar filhos e familiares através da atividade prostitucional. O aumento da procura por assistência, com relevância para as demandas por gêneros alimentícios e outros itens de subsistência, evidenciam a instabilidade econômica que lhes acomete.

A renda que advém dos serviços sexuais, apesar de aparentemente rápida, e muitas vezes, maior que em outras esferas de emprego também precarizados (dentro da divisão sexista do trabalho), disponíveis para uma classe com baixa escolaridade e muitas vezes sem nenhuma qualificação, é usada de forma imediatista e sem planejamento para situações adversas. O que fica nítido em um momento tal qual o que vivenciamos durante o enfrentamento da pandemia, que, teoricamente, não permite o contato físico, pressuposto para a atividade sexual.  

Frente a essa realidade, para além da pobreza, se agravam questões de saúde, com ênfase no bem-estar mental. Em meio as privações e a inoperância do estado em dar respostas ágeis para os desdobramentos da crise, a ansiedade e os sintomas de depressão aparecem como as principais queixas nesse âmbito.  

O isolamento social, enquanto medida de segurança para trabalhadoras e assistidas, limita a capacidade de atendimento da instituição, impossibilitando algumas ações que eram voltadas para o cuidado, como as terapias holísticas, a exemplo da auriculoterapia, e atividades grupais socieoeducativas e celebrativas, além do acolhimento pessoal.

Compreendendo as limitações que estão postas, mas em uma perspectiva constante de cumprir a missão da Rede Oblata junto a esse segmento, permanecemos buscando constantemente estratégias para nos manter presentes em seus cotidianos, ouvi-las e atende-las naquilo que é possível, usando a tecnologia como ferramenta e atuando  em parceria com a rede socioassistencial, que também está funcionando com dinâmicas diferenciadas. Todavia, entendemos que existem lacunas que não são possíveis de preencher com o trabalho remoto.

Acreditamos que ainda teremos muitos desafios pela frente, especialmente no processo pós pandemia, no que chamam de adaptação a nova normalidade. Para isso, faz-se necessária a intensificação de ações voltadas para reafirmação dos vínculos e cuidados, além da retomada da luta para uma agenda que priorize a atenção às mulheres pelas políticas públicas, considerado os ataques aos direitos sofridos ao longo dos últimos meses.  

Texto de Anna Lícia Brito – Assistente Social – Pastoral da Mulher

Referências: BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009 SILVA, A P; BLANCHETTE T G. Amor um  Real  Por Minuto. 2009

Imagem 1 de fernando zhiminaicela por Pixabay 

Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais da Pastoral da Mulher – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais. 
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