Precisamos da Lei do Feminicídio. E precisamos abalar as estruturas do machismo

Compartilhar
n-WOMAN-STOP-large570

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Sempre me incomodou como brasileira, cidadã e, principalmente como advogada, como o descaso com o cumprimento de regras por parte de parte da população leva a uma hiperatividade legislativa apenas para tornar mais severas punições para desvios de conduta que já não conseguíamos punir. Ou seja, as leis surgem para “corrigir” a falta de fiscalização de uma lei anterior que se fosse corretamente aplicada de forma isonômica já proporcionaria um convívio harmonioso em sociedade.
 
Por Tayná Leite, do Brasil Post 
 
É fato que paira sobre nós a ilusão de que a severidade da pena de alguma forma inibe a conduta criminosa coisa que eu particularmente sempre questionei. Ninguém deixa de beber e dirigir porque a multa está mais alta mas muitos o fazem quando as blitz começam realmente a acontecer. Maior prova disso é o fato de termos cidades em que a Lei Seca “pegou” e outras em que tudo corre como sempre correu (vide Rio versus Curitiba). A certeza da punição é certamente mais eficaz na prevenção do delito do que a severidade de uma pena não fiscalizada, ainda que, na minha opinião não seja também a punição a razão pela qual as pessoas deixem de cometer crimes e os Estados Unidos são a grande prova disso afinal de contas um dos países com penas mais severos do mundo é também o líder absoluto em população carcerária. Se apenas a severidade e certeza das penas resolvessem porque cargas d’águas esses cidadãos insistem na criminalidade?
 
Não deve causar espanto portanto que, à primeira vista, quando ouvia falar de criminalizar a homofobia e de tornar hediondo o homicídio pela condição de gênero minha primeira reação era de incômodo. Me pareceu sempre muito óbvio que esse tipo de crime já estaria qualificado (sendo portanto hediondos) em pelo menos duas (quando não em todas) das 5 qualificadoras possíveis[1].
 
Afinal o que é mais torpe e fútil do que atentar contra a vida de alguém pela sua condição de gênero ou orientação sexual? Como defender que um crime que não tenha fundamento outro que a irracionalidade e o machismo possa não se enquadrar em uma dessas qualificadoras?
 
Pois bem, eu estava errada.
 
Aparentemente não está claro para a maioria dos operadores do direito, inclusos aí os digníssimos membros da magistratura, que quando um homem mata uma mulher por ciúme ele está cometendo um homicídio qualificado. Não! A maioria acha ainda, em pleno século XXI, que este tipo de crime se enquadra na atenuante “sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima [2]” já que, né… #quemnunca #sqn
 
Comecei a me dar conta ao estudar em mais profundidade o tema e os números da violência contra a mulher no Brasil e no mundo, que precisamos sim dizer, e por que não gritar, que não se pode sair por aí espancando ou matando a namorada, mulher, mãe, filha, etc., simplesmente pelo fato de ela não ter atendido o padrão de comportamento esperado pelo sistema patriarcal.
 
Se somos o País onde precisamos legislar sobre tudo e dizer com todas as letras que maltratar animais é crime, que fazer o consumidor de otário também, precisamos então escancarar ao policial que atende a ocorrência de violência doméstica, ao promotor, ao juiz e à sociedade como um todo que tem alguma coisa muito errada quando 68,8% das mortes de mulheres acontecem no âmbito doméstico, nas relações privadas e mais íntimas, com mais intensidade e barbárie do que nos crimes patrimoniais (assalto, latrocínio, sequestro, etc.). Tem algo de muito torto e cruel em uma sociedade onde a maioria de assassinatos contra mulheres é cometida por pessoas com quem ela mantém ou mantinha algum tipo de relação de afeto, como cônjuges e/ou namorados ou os respectivos ex.
 
Se é preciso uma nova lei para chamar atenção ao fato de que o Brasil ocupa a 7ª posição de maior número de assassinatos de mulheres no mundo, num ranking com 84 países que venha mais uma lei… que venham todas quantas forem necessárias para compreendermos finalmente que tem algo muito errado com uma sociedade que trata suas mulheres como ou pior do que animais em termos de proteção legal!
 
Honestamente não acredito que uma lei resolva um problema tão profundo e estrutural, mas hoje vejo com muita clareza a importância da lei do feminicídio para ao menos evidenciar a existência desse problema. Ao começarmos a classificar os homicídios contra mulheres por razões de gênero dando “nome aos bois” poderemos quem sabe ter políticas públicas mais eficientes a esse respeito e principalmente colocar o elefante branco na sala de uma sociedade que ainda acredita que “o machismo já é coisa do passado e que a moda agora é namorar pelado”.
 
“Ahhhhh mas eozomi???? Eles morrem muito mais do que mulheres de morte violenta. E ainda por cima são obrigados a servir o exército…zzzzzzzzzzzzzz”
 
Parece tão difícil para alguns entenderem que não se trata de negligenciar o direito dozomi, mas de apontar uma condição de violência distinta. As causas que levam ao assassinato de homens (em sua maioria jovens, negros e pobres) são igualmente graves e devem ser endereçadas e corrigidas, mas acontece que as mulheres são assassinadas em circunstâncias em que os homens não costumam ser e é necessário expor tais circunstâncias. Homens não são esfaqueados porque supostamente estavam “dando mole para alguém” ou porque a mulher não aceita a separação. Ao menos não em regra (assim como também tem casos em que mulheres são mortas em assaltos, etc.). O que mais mata essas mulheres é o machismo!
 
O que está por trás de todos esses crimes é um sistema que objetifica e diminui a mulher em todas as esferas da vida pública banalizando a violência contra ela que é considerada pelo inconsciente coletivo como um ser de segunda categoria, um amontoado de carne que existe para servir e dar prazer ao homem. Seja no mercado de trabalho, na autonomia da vida sexual ou em qualquer papel que uma mulher exerça na sociedade, o mesmo sistema que caga regras de que a mulher tem que se dar ao respeito, que compara mulheres a fechaduras e homens a chaves mestras (sim! Isso ainda existe!), ou que determina que a culpa de um estupro é da roupa e não da bestialidade do estuprador é o que faz com que um crime tão grave quanto o homicídio, quando cometido contra uma mulher por ciúme seja atenuado e não agravado!
 
Uma sociedade que tem sites e páginas (que não cito por razões de não dar audiência) que fazem apologia ao estupro, à discriminação de gênero e à violência seguidas por centenas de milhares (ás vezes milhões) de pessoas (inclusive mulheres) e onde a cada uma hora e meia ocorre um feminicidio realmente precisa que se diga em lei que não se podem matar mulheres pois isso é torpe, é fútil e sinal de atraso social. Ao julgar a constitucionalidade do aborto de anencéfalos, o ex Ministro do STF Carlos Ayres Britto citou com maestria o sociólogo francês (sim! sociólogo foda ou é francês ou alemão!) Charles Fourier: “O grau de civilização de uma sociedade se mede pelo grau de liberdade da mulher”.
 
Precisamos da lei do feminicídio mas mais do que tudo precisamos abalar as estruturas do machismo! Precisamos no nosso dia a dia garantir com pequenas e grandes ações que os números da violência contra a mulher parem de nos envergonhar como espécie!
 
Foi pensando em tudo isso e na dificuldade dos operadores do direito e da sociedade em geral aceitarem essa nova lei (assim como foi na época da Lei Maria da Penha) que levamos à OAB do Paraná o tema para debate que foi prontamente acolhido pela Presidência da entidade que nos deu carta branca para organizar pela CEVIGE – Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero o evento que abordará aspectos sociais, sociológicos e jurídicos do tema. Teremos no evento que ocorre no próximo dia 9 de junho na OAB/PR importantes nomes relacionados ao tema e algumas heroínas pessoais da causa como a Dra. Silvia Pimentel, Luci Belão e outras importantes estudiosas do tema.
 
Me sinto muito orgulhosa por fazer parte dessa categoria de profissionais que tem uma instituição como a OAB que não foge à sua função social e democrática quando se trata de debater temas relevantes à sociedade como um todo.
 
 
Post originalmente publicado em: http://www.selfdh.com

Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais da Pastoral da Mulher – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais. 
Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *