O termo “epidemia de Aids” é uma memória distante em lugares onde as taxas de infecção estão em queda há anos, como Austrália, Américas e a maior parte da Europa.
Mas o termo seria adequado para descrever a situação na Rússia, apesar do silêncio das autoridades.
Leia abaixo o depoimento do ex-ministro da Saúde britânico Norman Fowler (que ocupou a pasta entre 1979 e 1990, durante o governo de Margaret Thatcher), que visitou a Rússia e esteve em contato com várias instituições de saúde e autoridades.
Durante anos, o país permaneceu calado sobre os seus níveis de infecção pelo vírus HIV. Mas um infectologista que trabalha nesta área há mais de 20 anos rompeu este silêncio e contou que a situação é uma “catástrofe nacional”.
Vadim Pokrovsky, chefe do Centro Federal de Aids em Moscou, observou o grande crescimento dos números nos últimos anos.
A Rússia tem cerca de um milhão de pessoas vivendo com o HIV e a taxa de infecção está crescendo ano a ano, diferente da situação da África subsaariana, onde a taxa de crescimento está desacelerando. E isto de acordo com os números do governo, que, quase todos concordam, subestimam a situação real do país.
No ano passado, cerca de 90 mil russos contraíram o HIV, comparados com menos de 3 mil pessoas infectadas na Alemanha, que uma das menores taxas de infecção por HIV da Europa. O país tem metade da população da Rússia, mas 30 vezes menos casos de infecção.
“Precisamos gastar dez vezes mais na prevenção. Precisamos de muito mais recursos e precisamos de algumas decisões políticas – e mudanças na lei em conexão com a metadona e as vidas particulares das pessoas”, me disse Pokrovsky recentemente.
Diagnóstico e ideologia
Um dos problemas é que a visão de Pokrovsky vai de encontro à política do governo e da cada vez mais poderosa Igreja Ortodoxa Russa.
Em uma entrevista neste mês com a agência de notícias France Presse, Pokrovsky disse que a estratégia do Kremlin, de apostar na promoção de valores tradicionais da família, não conseguiu parar o vírus.
“Nos últimos cinco anos de abordagem conservadora o número de pessoas infectadas pelo HIV dobrou”, afirmou.
Quando Pokrovsky pediu a introdução de educação sexual nas escolas – se opondo ao comissário presidencial dos direitos das crianças, Pavel Astakhov, que é contra a medida – a chefe do comitê do Conselho de Saúde da cidade de Moscou, Lyudmila Stebenkova, chamou Pokrovsky de “típico agente trabalhando contra os interesses nacionais da Rússia”.
Stebenkova afirmou ao jornal russo Kommersant que a abordagem de Pokrovsky apenas aumentaria o interesse das crianças por sexo e levaria a um aumento na infecção por HIV e outras doenças.
“Ao invés de distribuir preservativos, devemos promover fidelidade sexual e famílias saudáveis – isto é muito mais eficaz”, disse.
No entanto, os números sugerem outra coisa. Pokrovsky alertou as mulheres do país de que as chances de se casarem com um homem que tenha o HIV são altas.
“Existem entre 80 e cem casos de infecção por HIV entre as mulheres por dia. Isto não é piada – é por dia. Elas são, na maioria, mulheres jovens entre 25 e 35 anos e estão no principal grupo de risco”, disse o especialista.
Agulhas e metadona
Quase 60% dos portadores do HIV na Rússia são usuários de drogas injetáveis e um outro grupo são os de parceiros sexuais destes usuários. O vírus HIV se espalhou como no incêndio em uma floresta através de seringas e agulhas contaminadas.
Por isso, muitos países do mundo fornecem seringas ou distribuem metadona, que é tomada via oral, no lugar das drogas injetáveis.
Quando fui ministro da Saúde na Grã-Bretanha esta política começou em 1987 e, desde então, os números de pessoas recém-infectadas por agulhas contaminadas foi reduzido para quase zero.
Os mesmos resultados foram observados em vários países da Europa e na Austrália, que foi uma pioneira nestas políticas para reduzir os riscos nestes grupos.
A Organização Mundial de Saúde vê a droga como essencial no combate à dependência da heroína, mas, na Rússia, qualquer um flagrado usando ou distribuindo a metadona pode ser condenado a até 20 anos de prisão.
Autoridades de saúde contam exclusivamente com a “narcologia”, uma forma tradicional de tratamento que data da época em que Pedro, o Grande, tentava lutar contra o alcoolismo no país, no começo do século 18.
Esta abordagem, na essência, consiste em isolar o usuário de drogas durante um mês para desintoxicação. Depois, ele passa pela reabilitação, incluindo palestras, grupos de autoajuda, fisioterapia, aconselhamento de dieta e assim por diante.
O diretor do departamento de narcologia da Rússia, o médico Evgeny Brun, é contra o uso de metadona, pois, para ele, é uma droga que causa dependência.
É verdade que a metadona causa dependência, mas vem de uma fonte confiável, o serviço público de saúde, em doses controladas e sem agulhas, o que em muitos casos permite que o usuário tenha uma vida razoavelmente normal e se mantenha no emprego.
Mas o principal e o mais notório desse método russo é que não funciona.
Dedicação
Quando caminhei pelas enfermarias do Centro de Pesquisa e Prática em Narcologia de Moscou, não tive dúvidas da dedicação da médica chefe Elena Sokolchik.
O hospital, nos arredores de Moscou, é considerado um dos melhores centros do país, apesar de apenas 10% ou 15% dos pacientes tratados aqui seguirem voluntariamente para a reabilitação.
Elena visitou vários centros de reabilitação de usuários de drogas em outros países, mas não aprovou o que viu.
“Quando uma usuária chega, junto com os filhos, a um centro onde ela pode conseguir metadona, sinto que é errado e hipócrita. Não quero que uma criança veja drogas viciantes distribuídas como se fossem remédio”, disse.
A médica também afirmou que se orgulha de seu trabalho.
“Posso dizer com certeza que, dos pacientes que passam pelo nosso programa de reabilitação, 48% ficam livres das drogas durante um ano, 35% conseguem dois anos e 8% ficam livres por oito anos”, afirmou.
Mas estas estatísticas indicam que cerca de metade daqueles que passam pela reabilitação não ficam livres das drogas por um ano e não falam nada sobre os 80% a 90% dos que não ficam para a reabilitação. Pesquisas e mais pesquisas mostram que muitos pacientes logo voltam a injetar drogas e, mais uma vez, espalham o vírus.
“Ninguém acredita quando falo que o governo russo não está fazendo nenhum trabalho de prevenção para dar um fim à epidemia de HIV”, disse Ana Sarang, diretora da Fundação Andrey Rylkov, pequena organização de caridade em Moscou dedicada a ajudar usuários de drogas.
“Não há nenhum esforço para parar a epidemia entre pessoas que injetam drogas e, sem surpresa, a Rússia continua sendo um dos poucos países do mundo onde a epidemia de HIV ainda está crescendo.”
Também não há apoio para as organizações de voluntários que tentam ajudar.
Sarang afirma que a organização dela é a única fazendo trabalho de contenção de danos nas ruas de Moscou. Mas é uma organização que sobrevive com pouco dinheiro.
Ponto positivo
No entanto, há alguns pontos positivos. A alguns quilômetros de São Petersburgo há uma clínica para doenças infecciosas, construída no século 19 pelo czar Alexandre 2º e que agora funciona como uma unidade especial para crianças com HIV, algumas delas órfãs, outras, abandonadas.
O trabalho dedicado dos funcionários dá às crianças os cuidados necessários – e ainda mudou a atitude dos que moram próximos.
Na década de 1980, havia o temor generalizado de que o HIV poderia ser contraído pelo toque ou mesmo a proximidade com uma pessoa infectada. O presidente Boris Yeltsin chegou na receber um petição pelo fechamento da clínica para crianças – que chegou a ser fechada, mesmo que por apenas 24 horas. Mas, o hospital foi reaberto, o comportamento mudou e hoje muitas crianças são até adotadas.
Outros preconceitos continuam: adultos com HIV são isolados. Prostitutas que levam preservativos são ameaçadas ou devem pagar subornos para a polícia.
A recente legislação do governo contra o que vê como “promoção da homossexualidade” estimula o preconceito e dificulta a impressão de panfletos para o aconselhamento sobre sexo seguro.
Muitos temem fazer o exame para descobrir se estão infectados por que temem a ameaça da discriminação.
Talvez, por estas razões, Vadim Pokrovsky se mostra pouco otimista quanto à situação no país.
“(Para) a vitória contra a infecção pelo HIV serão necessários outros 25 anos”, afirmou.