8 anos da Lei Maria da Penha: a importância de mensurar e punir os danos da violência ‘invisível’

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Especialistas apontam que, apesar de não deixar marcas físicas evidentes, a violência psicológica é também uma grave violação dos direitos humanos das mulheres, que produz reflexos diretos na sua saúde mental e física. Considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como a forma mais presente de agressão intrafamiliar à mulher, a violência psicológica pode e deve ser mensurada e punida, conforme apontam todas as entrevistadas ouvidas pelo Informativo Compromisso e Atitude.
Reprodução
Especialista na questão da violência doméstica contra mulheres, a médica Ana Flávia D’Oliveira, pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), alerta que a naturalização da violência psicológica estimula uma espiral de violências. “As agressões psicológicas também denunciam uma desigualdade na relação que pode evoluir para violência física ou sexual, ou homicídios. Então, ter um diagnóstico precoce é bastante importante para evitar dano, morte ou outros crimes posteriores. E a própria violência psicológica já é crime: calúnia, injúria, difamação e ameaça de morte estão previstas no Código Penal”, define.
O encaminhamento dos processos pelas estruturas dos sistemas de Justiça e Segurança, entretanto, é considerado, por especialistas, como um dos grandes desafios para a efetivação dos direitos assegurados às mulheres na Lei Maria da Penha. Um estudo do qual participou a pesquisadora Maria Cecília Minayo, coordenadora do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, revela que “muitos policiais resistem ou se negam a fazer o termo de ocorrência, principalmente nos casos de violência psicológica, estando incluídas as ameaças de morte”. Em entrevista, Minayo explica que “a violência psicológica, por ser fruto em geral de uma relação verbal, é muito mais difícil de ser compreendida por um agente da lei”.
O problema, segundo a médica Ana Flávia, está na não compreensão dessa relevância na condução do inquérito, que afeta a possibilidade de se responsabilizar o agressor pelo crime de violência psicológica. A dificuldade, porém, não significa impossibilidade. Ana Flávia coordenou no Brasil uma pesquisa realizada em 10 países pela Organização Mundial de Saúde sobre os efeitos da violência doméstica na saúde das mulheres, de 2000 a 2003. Essa pesquisa avaliou, inclusive, a repercussão isolada da violência psicológica, verificada como o evento mais frequente na vivência violenta de mulheres no mundo todo.
O estudo reiterou resultados de outras pesquisas que comprovam a repercussão da violência psicológica na saúde mental, aumentando a prevalência de depressão, ansiedade e ideias suicidas, mesmo quando as agressões não eram acompanhadas de violência física ou sexual. De acordo com a especialista, ao contrário do que muitos pensam ao minimizar a violência psicológica, os dados clínicos possibilitam apontar também repercussões físicas, como hipertensão, gastrite e doenças relacionadas ao estresse. “E isso é uma evidência científica da importância dessa vivência na saúde, porque, provavelmente, essa pessoa sofrerá impactos também no desempenho no trabalho e em outras dimensões da qualidade de vida. Viver cotidianamente sob ameaça, desqualificação e humilhação tem um impacto muito grande na capacidade de lidar com os problemas, de ter uma saúde integral”, destaca.
A médica ressalta ainda que a banalização social dos comportamentos violentos leva a que, muitas vezes, as próprias mulheres não qualifiquem expressamente como violência as agressões e pressões sofridas, embora os efeitos sobre o comportamento e a psique possam ser verificados no atendimento especializado.
Especialistas recomendam perícia psíquica e credibilidade à palavra da vítima
Para enfrentar o paradoxo entre o senso comum e o papel estabelecido em lei para as instituições da rede de apoio, Maria Cecília Minayo propõe a criação de protocolos de atendimentos que permitam aos agentes analisar a gravidade da situação. “Pela ‘imaterialidade’ da violência psicológica, se não houver um protocolo de atendimento que ajude a formular as perguntas certas, sempre haverá espaço para não levar a sério a violência que é cometida”, afirma.
A doutora em Psicologia Clínica e da Saúde pela Universidade de Santiago de Compostela e psicóloga forense aposentada, Sonia Rovinski, explica que a avaliação psicológica ou perícia psíquica pode e deve ser utilizada como instrumento para mensurar os danos causados à saúde da vítima, especialmente para efeito de provas judiciais. “A avaliação desse dano psíquico poderia servir tanto de prova de que aquilo aconteceu, como para mostrar a gravidade do que a vítima pode estar sentindo. Para que ela possa, por exemplo, receber o ressarcimento, tanto na esfera cível quanto criminal”, afirma (veja infográfico).
 
É preciso também enfrentar o peso da diferença no tratamento das vítimas em crimes de gênero – a exemplo do estupro e da violência doméstica – que fica evidente na prática diária, de acordo com a promotora de justiça Daniella Martins, do Distrito Federal. “Do balcão das delegacias às salas de audiência, dos boletins de ocorrência aos acórdãos, percebemos que a credibilidade da palavra da vítima mulher é quase sempre questionada, como se ela precisasse provar ser uma vítima honesta, crível. O relato da vítima do sexo feminino, em pleno século XXI, costuma ser atrelado a questionamentos sobre sua conduta pessoal e comportamento sexual, o que é externado por meio de perguntas que contêm nítidos juízos de valor, a exemplo de questionamentos sobre uma possível ‘provocação’ por parte da vítima, uma possível ‘aceitação do resultado’. Não é incomum ouvir nas salas de audiência a pergunta ‘a senhora provocou o réu de alguma forma?’”, critica.
A promotora ressalta ainda que nem sempre a violência psicológica se apresenta sob a forma da agressividade, uma vez que existem diversas formas de solapar a autodeterminação de uma pessoa, sobretudo, quando o intuito é manter um relacionamento contra a sua vontade. “Gosto sempre de citar o exemplo de uma vítima que estava em frangalhos porque o ex-marido não aceitava a separação, perseguindo-a com promessas de amor eterno, chorando, encurralando-a com carinhos nos cantos da casa, à qual tinha acesso por conta dos filhos, telefonando diariamente para ela, para amigos, colegas de trabalho e parentes forçando uma reconciliação. Como esta mulher poderia, naquelas circunstâncias, pensar em uma vida autônoma se aquele homem era um fantasma onipresente? Como poderia pensar em se relacionar com outra pessoa? Muitas vezes as vítimas não encontram forças para se erguer contra isso. O ex-marido nunca levantou a voz ou o dedo para esta mulher, mas conseguiu submetê-la completamente por anos com seu comportamento abusivo, insistente, desrespeitoso. Eu entendo que houve violência psicológica neste caso”, exemplifica.
Nesse contexto, a juíza Elaine Cavalcante, titular da Vara Central de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do TJSP, destaca a importância do respeito à credibilidade da mulher que denuncia ser vítima desse tipo de prática. “Quando não há prova material da violência, como nos casos de violência psicológica, os operadores da Justiça precisam dar credibilidade à palavra da ofendida, desde que coerente com o conjunto probatório, e considerá-la como suficiente para a condenação”, indica.
As especialistas enfatizam ainda o desafio da formação e qualificação profissional para o atendimento às mulheres em situação de violência doméstica, com ênfase em noções de gênero e direitos humanos, para impulsionar o avanço no cumprimento da Lei em sua amplitude.
Ações para mudar o marco jurisprudencial
Os promotores públicos podem e devem ter um papel ativo no enfrentamento à violência psicológica contra as mulheres. Segundo a Coordenadora da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid) e promotora de justiça no Estado da Bahia, Márcia Teixeira, é papel do MP oferecer denúncias e cobrar do sistema de saúde o fornecimento de relatórios de atendimentos psicológicos e psiquiátricos para fins de prova, ainda que indireta, no Poder Judiciário.
“Considerando a fragilidade dos institutos médicos legais, precisamos desempenhar esse papel para que essas denúncias sejam recebidas e tenhamos condenações nessa direção para fortalecer a jurisprudência e o entendimento de que o artigo 129 [do Código Penal] aplica-se também à violência psicológica com danos à saúde da mulher”, destaca.
A promotora defende a tese de que, ao estabelecer que a lesão corporal é toda ação que ofenda “a integridade corporal ou a saúde de outrem”, se a vivência de agressões psicológicas recorrentes resulta em danos à saúde da mulher o dispositivo penal deve ser aplicado de forma combinada às disposições da Lei 11.340/2006. “E não necessariamente você precisa ter um diagnóstico de transtorno psíquico ou mental, mas que a situação tenha levado a mulher a desenvolver uma síndrome do pânico, fobia social, ou a tenha levado a fazer tratamento pós-trauma”, explica.
Ela defende também que mecanismos de perícia psíquica sejam colocados expressamente na legislação, assegurando o atendimento especializado em todos os IMLs do país – que hoje em sua maioria não oferecem tal procedimento.

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ACampanha “Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha – A lei é mais forte”é resultado da cooperação entre o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Governo Federal, por meio da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e o Ministério da Justiça. Tem como objetivo unir e fortalecer os esforços nos âmbito municipal, estadual e federal para dar celeridade aos julgamentos dos casos de violência contra as mulheres e garantir a correta aplicação da Lei Maria da Penha.

Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais da Pastoral da Mulher – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais. 
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