Entre o dia em que a desembargadora Maria Berenice Dias, 67, entrou na magistratura, tornando-se a primeira juíza nomeada na região Sul do país, e este 8 de março passaram-se 42 anos. E foram precisos 33 anos para que outra Maria desse nome à primeira lei do país voltada a combater a violência doméstica.
Por Paula Bianchi, do UOL
Entre uma história e outra, Maria Berenice –que se acostumou a lutar contra o preconceito desde o primeiro momento em que pisou em um tribunal–, fala da importância da lei Maria da Penha e das dificuldades que as mulheres enfrentam até hoje com a legislação e a Justiça.
“Sempre foi muito barato bater em mulher”, diz, ao lembrar os tempos pré-Maria da Penha. “Esses casos ficavam diluídos no juizado especial ao lado de crimes de pequeno potencial ofensivo, briga com vizinho, roubo de bicicleta, virava cesta básica.”
Hoje aposentada, a juíza, que cunhou o termo “homoafetividade” e deixou a toga em prol da causa LGBT, lembra que ainda há muito o que reivindicar e questiona a estagnação da luta feminista. “Essa história de cumprimento, flor, levar para jantar, é horrorosa. Ainda temos muito o que lutar. Os avanços acontecem, mas não na velocidade necessária.
UOL – Você foi a primeira mulher a ser nomeada juíza no Rio Grande do Sul. Como foi esse processo?
Maria Berenice Dias – Foi em 1973. Até então nenhuma mulher havia sido nomeada juíza nem no Rio Grande do Sul, nem em Santa Catarina, no Paraná ou em São Paulo. No norte, como os salários eram mais baixos e os homens não se interessavam, sempre tiveram juízas. Em mais de cem anos do Poder Judiciário, as mulheres nunca haviam sido sequer admitidas para prestar o concurso na região Sul. Sempre quis ser juíza, meu pai era juiz. Tinha dois modelos dentro de casa. A mãe, do lar, cuidando dos filhos, e o pai, uma pessoa engajada, realizada profissionalmente. Quando me formei, ao requerer a inscrição, a votação admitindo que mulheres fizessem o concurso ficou empatada e só pudemos concorrer devido ao voto de desempate do presidente. Foi um voto resignado. O comentário era: “elas vão fazer o concurso, mas vão rodar”.
Nessa primeira prova passaram quatro mulheres e iniciou outra polêmica. Diziam que as mulheres não passariam nas provas orais, não poderiam trabalhar no interior. “Onde já se viu, vão chegar lá e vão namorar o oficial de Justiça? Como vão instruir processos sobre crimes sexuais, morar sozinhas?”. Usaram todo o tipo de justificativas piegas. Durante o concurso, os candidatos fazem entrevistas com um desembargador que faz parte da comissão de avaliadores. O que fez a entrevista comigo chegou a perguntar se eu era virgem. Na época, a honra da mulher estava muito ligada à virgindade. Teve uma mulher, um tempo depois, que não entrou porque tinha filhos, mas não era casada.
Você sofreu preconceito durante a sua carreira por ser mulher?
Dentro do tribunal, durante toda a carreira. Nunca fui promovida por merecimento, só por antiguidade. E olha que eu me puxava. Pensava: “estou abrindo um caminho, não posso deixar que ele seja fechado, tenho que mostrar serviço”. Tinham muita má vontade. Quando meu primeiro filho nasceu, não me deram licença-maternidade, apenas 30 dias de licença-saúde. Disseram que não estava previsto no regimento. Essa resistência ao meu avanço profissional ficou escancarada na hora em entrei no Tribunal de Justiça como desembargadora, já em 1995. Mesmo sendo promovida por antiguidade, recebi sete votos contrários em um universo de 21. Se fosse a maioria, eu seria posta para fora da magistratura. Me senti ultrajada, discriminada. Chegaram a alegar que não tinha banheiro feminino –eram apenas dois no Tribunal pleno. Queriam que eu chamasse um guarda cada vez que fosse usar. Questionaram: “agora vão ficar todos com um banheiro?”. Respondi que se tivesse mais mulheres não seria assim.
Você comentou que tinha esses dois modelos em casa. A mãe, que escolheu ter filhos, não trabalhar, e o pai, desembargador. Acha que hoje ainda se espera que a mulher cumpra esse papel de “dona de casa”?
Não sou contrária que as mulheres se dediquem à casa, aos filhos. Mas ninguém, quer homem, quer mulher, pode não ter meios de prover a própria subsistência. Essa hierarquização histórica de papéis no casamento, que vê o marido como provedor e a mulher como reprodutora, no domínio do lar, torna a mulher refém. Não tendo como se manter, manter os filhos, elas suportam qualquer coisa dentro do casamento. A violência doméstica é o retrato disso.
Recentemente foi aprovado o projeto de lei que torna o feminicídio [ato de matar uma mulher pelo simples fato de ela ser do sexo feminino] crime hediondo. Como você vê os avanços legais na questão da violência contra a mulher?
Apesar de todas as resistências, o avanço com a Lei Maria da Penha foi muito significativo. Se dependesse apenas dos nossos legisladores, ela não teria saído. A lei acabou aprovada por pressão internacional, o que é vergonhoso. A Maria da Penha deu visibilidade à violência doméstica. Antes não se quantificava, esses casos ficavam diluídos no juizado especial ao lado de crimes de pequeno potencial ofensivo, briga com vizinho, roubo de bicicleta, virava cesta básica. Sempre foi barato bater em mulher. A lei teve um caráter pedagógico grande, todos a conhecem. Os homens passaram a ter medo da lei.
Redes sociais ajudam a disseminar ameaças contra as mulheres?
As redes sociais ajudam a prevenir a violência contra a mulher. As mulheres, que sempre foram muito isoladas, começaram a se sentir mais seguras. Dentro de casa elas tem acesso à informação, relatos de outras mulheres. As redes as encorajam a buscarem seus direitos. É muito mais favorável do que desfavorável.
Hoje temos a presidente Dilma Rousseff no Brasil, Michele Bachellet no Chile, Cristina Kishner na Argentina. Como você vê a evolução representatividade feminina na sociedade?
É importante ter mulheres em postos de poder, ainda que nenhuma dessas presidentes tenham um grande comprometimento com as questões de gênero. Isso serve como um espelho para as outras mulheres. Parece que a gente não pode ser chefe, presidente, sempre tem que ser a secretária, a datilógrafa, ocupar posições subalternas. O poder sempre assustou as mulheres porque ele sempre foi exercido pelos homens.
Você é a favor da descriminalização do aborto?
O aborto é um fato. Historicamente, as mulheres sempre interromperam a gravidez de filhos que elas não podem ou não querem manter. Podem criminalizar, proibir, as mulheres vão continuar interrompendo a gravidez. Se fossem prender todas as mulheres que fizeram aborto, não teríamos presídios suficientes. Criminalizar só aumenta o sentimento de culpa que acompanha toda mulher. Ninguém faz um aborto sorrindo, usa a interrupção da gravidez como método contraceptivo. A mulher tem que ter o direito de ter filhos ou não sem que o Estado diga que ela cometeu um crime.
Por que você deixou a magistratura e se envolveu com a causa LGBT?
Por ter sido vítima da discriminação, comecei a atentar para a questão dos excluídos. A discriminação dói muito. E as mulheres não são discriminadas apenas para entrar na magistratura, mas em todos os âmbitos. Me dei conta de que no direito de família era onde havia mais discriminação e comecei a trabalhar nessa área. Me surpreendeu ver que as pessoas do mesmo sexo não estavam ali. Fui a primeira pessoa do Brasil a dizer: “olha, as pessoas do mesmo sexo têm que ter direitos, são uniões”.
O que é família? É um um comprometimento entre as pessoas pela responsabilidade do afeto.
A expressão homossexualidade é muito pesada, fala em sexo, remete a cama, e a união é mais do que isso, por isso criei a ideia de homoafetividade e a expressão pegou. Vi que dentro do Poder Judiciário não se avançava o suficiente. Para o juiz decidir, alguém tem que entrar com a ação. Me aposentei e abri o primeiro escritório do Brasil a tratar de direito de família e de direito homoafetivo.
Como você vê a chamada terceira onda do feminismo?
A onda virou marola. Sempre houve uma rejeição plantada pelos homens ao movimento feminista. A ponto de transformarem a expressão feminista em palavrão. “A mulher feminista é feia, mal amada, ninguém quis, sapatão…” Isso atrapalhou muito o movimento. Feminista são todas as pessoas minimamente inteligentes, tanto mulheres como homens, que reconhecem que a igualdade não existe. As mulheres conseguiram alguns ganhos importantes. Queda do tabu da virgindade, surgimento dos métodos contraceptivos, entrada no mercado de trabalho, ainda que ganhando menos. Mas me parece que se conformaram com isso.
Existe um movimento muito diluído e desarticulado, ainda liderado pelas jurássicas do começo do século passado. No momento, o movimento feminista está tomado pelas lésbicas, o que não é ruim –a homossexualidade feminina nunca foi muito visível porque a sexualidade feminina nunca foi muito visível, aceita. Elas não estão na zona de conforto que estão as demais. Ainda buscam direitos, e as outras parecem que abandonaram esta luta.
O que falta as mulheres conquistarem?
Nós precisamos dar um jeito de que o Estado assuma a responsabilidade de baixar os índices da violência doméstica. Isso exige um investimento muito grande em termos de políticas públicas, juizado de mulheres, criação de juizado de violência doméstica, casas de abrigo… É o que mais contingencia o movimento. Há um sentimento de menos valia para a palavra, o corpo, a saúde da mulher.
As mulheres têm o que comemorar neste dia 8?
Houve um desvirtuamento do Dia da Mulher. De um dia que marca a luta, a morte das mulheres, virou comemoração. Podemos comemorar essa lei do feminicídio, é um avanço. Essa história de cumprimento, flor, levar para jantar, é horrorosa. Ainda temos muito o que lutar. Os avanços acontecem, mas não na velocidade necessária.
12/3/2015
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