A prostituta como família. Breves considerações sobre o documentário “Filhos da Puta”, produzido pelo Coletivo Rebu

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Toda puta é mulher.

A mulher puta gera o filho.

O filho da puta.

A puta mulher.

Falar sobre prostituição ainda representa um grande tabu nos dias atuais. Mesmo diante de todas as transformações sociais em torno do campo da sexualidade e da moral sexual, o pensamento conservador, que ganha impulso nos últimos tempos, tende a carregar de preconceitos e estigmas a figura da trabalhadora sexual. Falar sobre a família da prostituta é uma narrativa ainda menos recorrente, à medida que:

a família da prostituta apresenta dois desvios fundamentais da estrutura normativa vigente na sociedade global: 1) numa “sociedade de homens”, ser chefiada, de forma geral, por mulheres; 2) numa sociedade de sexos legítimos, ser a ilegitimidade sexual (BACELAR, ANO 1982, Pg. 30).

Apesar dos debates modernos em torno da família e sua diversidade de configurações, permanecemos, no contexto do capitalismo, inseridos em um modelo patriarcal de sociedade que legitima famílias nucleares e reafirma o papel de submissão feminina, inclusive no campo sexual; por outro lado observamos o crescimento de grupos chefiados por mulheres, que, usufruindo da liberdade e dos direitos adquiridos legalmente, não se submetem a relações opressoras e optam por romperem com os modelos familiares normativos.

No contexto da prostituição, a partir da experiencia de acompanhamento as assistidas pela Pastoral da mulher, Unidade Oblata em Juazeiro, é comum identificarmos um perfil de mulheres com famílias monoparentais, onde são provedoras no campo afetivo e financeiro dos filhos, além de outras pessoas com vinculo consanguíneo ou não, que se agregam em uma relação de dependência.  

“Na família da prostituta, a mãe exerce a autoridade e a liderança sobre todos os membros do grupo. É ela quem dirige todas as atividades do grupo, definindo a configuração da organização do grupo doméstico.”

(BACELAR, ANO 1982, p. 111).

Trazendo à tona a família da prostituta, o documentário “filhos da puta” mostra a descrição de três filhos de trabalhadoras sexuais e suas percepções sobre suas genitoras e a realidade social em que estiveram inseridos ao longo da vida. Sendo o grupo doméstico, o cerne da construção pessoal de cada ser, ambiente onde se dá educação primária e a socialização, Antônio Alessandro, João Victor e Cristina Rodrigues apresentam, a partir dos seus olhares singulares, uma perspectiva sobre a mulher “puta” e mãe, que difere do pensamento massivo subjugador, que aponta negativamente a figura dessa. Abordam ainda a experiência de serem “filhos da puta” no sentido denotativo do termo e todo o processo discriminatório que inicia no próprio ambiente familiar e se estende por toda a comunidade.

Imagem: Instagram @docfilhosdaputa

Apesar das histórias de vida diferentes, os personagens traçam em comum um retrato da mãe como um símbolo de luta pela sobrevivência dentro de uma sociedade sexualmente hierárquica, com base no gênero. São mulheres que superaram o preconceito para garantirem o sustento do seu grupo familial através da prostituição. Qualificam-nas como protetoras, amigas, confidentes e as apontam como uma referência.

Os sujeitos entrevistados afirmam enxergarem o trabalho sexual como qualquer outra atividade laboral. É destacado que embora em muitas ocasiões não se trate de uma escolha em meio a opções diversas, dado que é definido por vezes pelas condições socias as quais foram expostas, é digno de respeito, devendo ser responsabilidade do Estado a oferta de alternativas, por meio de políticas públicas, às mulheres que queiram abandonar ou sequer adentrar ao exercício desse ofício.

“A profissão de prostituta não é, na maioria dos casos, uma escolha propriamente dita dessas mulheres. Essa escolha, como diz Pierre Bourdieu, é apenas aparente, constituindo-se, na verdade, em uma “escolha pré-escolhida”, na qual as prostitutas são inclinadas a orientarem sua conduta a partir de alternativas previamente definidas pelo contexto de vulnerabilidade e precariedade do seu universo familiar.”

(MATOS, ANO 2009, p.175)

Um ponto que chama bastante atenção no vídeo é narrado por Cristina, ao se referir as formas de preconceitos que experenciou. Em seu relato afirma que a sociedade, em partes, espera que ela, pelo fato de ser mulher e filha de uma prostituta, reproduza o exercício dessa atividade. Trazendo para a nossa realidade, embora observemos que as mulheres não desejem que suas filhas adentrem ao mundo da prostituição, em muitos casos isso não é evitado, tornando-se comum encontramos mães e filhas nos ambientes em que realizamos abordagens sociais.

Sabemos que os imbricamentos que levam a esse fenômeno nada se relacionam com o desejo de mães e filhas, mas ao modelo de sociedade opressor que se reproduz e não permite o rompimento da pobreza, da desigualdade de gênero e outros fatores que conduzem a essa escolha “pré-escolhida”.  

Apesar do uso pejorativo da expressão “filhos da puta”, os entrevistados no documentário demostram ressignificação ao termo. São relatos da vida real que muito se parecem com as histórias de vida das mulheres que atendemos e acompanhamos na Pastoral. Não é fácil lidar com todas as adversidades que cercam o universo prostitucional, mas para eles, após toda a vivência e entendimentos da vida, passam a orgulhar-se de suas mães.

“Quando sou chamada de filha da puta, para mim é um elogio e não uma ofensa”. 
(Cistina Participante do documentário)

Referências:

Documentário “Filhos da Puta”. produzido pelo coletivo Rebu, com Produção executiva de Dantuzza Souza, Trabalhadora sexual e representante do coletivo Rebu, e dirigido por Kelson Frost.

Bacelar, Jeferson Afonso. A família da prostituta. Ática; [Salvador]: Fundação Cultural do estado da Bahia, 1982.

 Souza, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive / Jessé Souza; colaboradores André Grillo … [et al.] — Belo Horizonte : Editora UFMG, 2009.

Texto de Anna Lícia Brito, assistente social da Pastoral da Mulher.

Imagem destaque de Public Co por Pixabay

Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais da Pastoral da Mulher – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais. 
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