“Se todas as portas se fecham, eu lhes abrirei uma” Pe. Serra
Diante da frase do Pe. José Maria Benito Serra, fundador do Instituto das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor, iniciamos a nossa reflexão sobre “o novo normal” – realidade de pandemia que chegou de mansinho e tem afetado todas as estruturas humanas, sociais e ecológicas do planeta. Contudo, não podemos deixar de mencionar que a natureza tem conseguido ‘respirar’, o que foi possível graças ao nosso distanciamento. Se vivêssemos numa “Ecologia Integral= família humana + casa comum”, onde existisse equilíbrio, respeito e sustentabilidade provavelmente estaríamos vivendo melhor, sendo inclusive sinal de maturidade. Acredito que a natureza tem muito a nos ensinar nesse momento histórico para a Humanidade.
Brasil da desigualdade
Que o Brasil é um dos países mais desigual do mundo, todas/os o sabemos. Provavelmente a interpretação de tanta desigualdade seja compreendida de formas diferentes. Atualmente tem se tornado cada vez mais comum no Brasil, e porque não dizer em tantos outros países, a justificação da desigualdade através de um “senso comum” raso, fundamentado em assombrosos desatinos políticos, que não tem feito outra coisa senão reforçar a negação de direitos humanos, políticos e sociais, por meio do autoritarismo/fascista e do ideal de onipotência que direta ou indiretamente seleciona as vidas que devem morrer ou viver (necropolítica).
Diante desse cenário o conceito de “meritocracia”– justificativa do “sucesso” ou “fracasso” do indivíduo medido exclusivamente pelo “esforço” pessoal sem levar em conta as dificuldades de acesso aos direitos fundamentais e as violências estruturais – se alastra. Quando se fala em violações de direitos fundamentais, o provimento de necessidades básicas, alimentação, por exemplo, pode soar como assistencialismo. Visto por outro ângulo, na realidade que vivemos, pode ser o necessário naquele momento para que a mulher consiga continuar vivendo, o que não desassocia do nosso objetivo de promoção da vida, ao contrário, nos leva a compreender a complexidade da vida e encontrar medidas eficazes para a resolução dos problemas demandados.
Isolamento social e os gritos das mulheres desamparadas
Há mais ou menos quatro meses, a realidade tem nos surpreendido ao impor o isolamento social como medida de prevenção contra a proliferação do corona vírus e pressuposto de ‘continuar vivendo’. A partir daí nossos projetos tiveram as portas (físicas) fechadas e de nossas casas continuamos trabalhando ‘Home Office’, virtualmente, mas com os nossos sentidos aguçados nos “gritos” de tantas mulheres desesperadas, desamparadas e desesperançadas que nos pedem socorro.
Ao traçarmos o perfil geral do público atendido, temos:
- Mulheres cisgênero;
- Faixa etária: 18 a 73 anos; Raça/cor/etnia: negras (grande maioria);
- Escolaridade: de analfabetas ao ensino superior completo (no geral a grande maioria não terminou o ensino fundamental);
- São mães (primeira gestação ainda na adolescência);
- São as principais responsáveis pelo sustento da família (monoparental feminina).
Segue um trecho de uma entrevista de Leandro Karnal que resume o que temos vivenciado no atendimento às mulheres nesse período de pandemia:
Com o fechamento dos hotéis, os problemas vivenciados pelas mulheres se desvelou de forma assombrosa, o que nos fez compreender a crueldade do sistema capitalista, que fundamentado em alicerces patriarcais/machistas, classistas, racistas, podem tornar a realidade ainda pior do que a que presenciamos cotidianamente nos atendimentos em nossos projetos.
Acesso aos benefícios sociais
No Brasil, o governo ampliou as ações de Assistência Social a nível Federal, com o Auxílio Emergencial, aonde as mulheres podem receber uma renda de R$ 600,00 ou R$ 1.200,00 (se mães solo). Em Minas Gerais, o governo Estadual disponibilizou a Bolsa Merenda (R$ 50,00) para cada aluno matriculado em escolas estaduais, enquanto no município de Belo Horizonte as famílias cadastradas no CadÚnico recebem uma cesta básica mensal, com duração de 4 meses podendo se estender a mais dois meses, o que tem acontecido.
Como percebemos, para ter acesso aos benefícios sociais precisa-se estar dentro dos critérios estipulados. Muitas mulheres se enquadravam nos critérios, porém não tinham os instrumentos legais para acessar o benefício. As dificuldades são diversas, desde não estarem cadastradas no CadÚnico (ou cadastro desatualizado, não receberem o Benefício Bolsa Família), à falta de documentos (erros, documentos desatualizados/cancelados, etc.). Sem contar os problemas apresentados no manuseio de aparelhos tecnológicos (celular) o que tem sido fundamental para acesso aos programas virtuais do governo, como é o caso do aplicativo “Caixa Tem” da Caixa Econômica Federal. O que não é de se estranhar são as demoras e problemas nesse sistema que não suportando a sobrecarga tende a dar erros constantes, o que continua acontecendo.
As parcerias se fazem necessárias no desenvolvimento do nosso trabalho. Como o Estado não consegue embarcar todas as mazelas da sociedade, o que reconhecemos ser na maioria das vezes por falta de uma gestão eficaz e eficiente, ou simplesmente por comodismo dos gestores, nós, Missão Oblata, não conseguimos responder a todas as necessidades que demandam as mulheres, nosso público prioritário, mas podemos formar e fortalecer parcerias com instituições governamentais e não governamentais. Aqui entra um dos nossos objetivos que é a Sensibilização Social e o Advocacy. Compreendemos hoje a necessidade de refletirmos com os diversos setores sociais sobre a realidade das mulheres que exercem a prostituição. A Rede Oblata tem crescido nessa compreensão. Se não formamos as nossas parcerias para atendimento das mulheres encaminhadas significa que elas sofrerão mais uma vez com o estigma e o preconceito, inclusive de setores governamentais. O estigma tende a marcar a subjetividade das mulheres de forma tão cruel que a mesma acaba introjetando e vivendo da forma como foi ‘reconhecida’, o que chamamos de auto-estigma.
“…. Então vocês têm que vir, senão não tenho como abrir. Porque o homem está entrando aqui no hotel, procurando mulher, mas não tem. Então vocês têm que dar um jeito de vir. Senão não tenho como abrir o hotel. ” (dona de hotel).
A pobreza além da falta de renda
A realidade das mulheres que trabalhamos é marcada pelo sofrimento social. Como bem conceitua a socióloga Carla Bronzo, dialogando com o pensamento de Amartya Sen e outros pesquisadores da área, precisamos ampliar nossa compreensão de pobreza para além da falta de renda (pobreza objetiva), o que é um grande problema, sem dúvida, mas compreender também a pobreza como a falta de dignidade, capacidades e privação de liberdade (pobreza subjetiva). Contudo, falar de pobreza é falar de um problema “multidimensional, heterogêneo e psicossocial”, o que podemos constatar nas entrelinhas da frase da dona do hotel.
Em Belo Horizonte, a maioria dos estabelecimentos ainda se encontram fechados, mantém-se abertos os considerados essenciais (farmácias, supermercados…). Muitos hotéis de prostituição do Hipercentro estão abertos, o que por sinal não é de se estranhar, uma vez que persistiram e persistem mesmo quando a situação pandêmica na cidade está em alerta com o aumento dos casos de contaminação e óbitos. Sei que as mulheres precisam trabalhar, como muitas delas defendem, até mesmo porque a situação de privação é extrema (pobreza objetiva e subjetiva).
Recordo da ligação de uma mulher desesperada ao saber que suas colegas estavam trabalhando no auge da proliferação do vírus. Ela dizia: “se muitas pessoas estão morrendo por causa dessa pandemia sem o atendimento que devia ter, imagine nós que somos prostitutas. Ai que eles vão deixar morrer mesmo! ”. Faço minhas, as perguntas de Judite Butler:
“…em que circunstâncias é possível lamentar uma vida perdida? De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Quais são essas vidas que, se perdidas, não serão consideradas em absoluto uma perda? É possível que algumas de nossas vidas sejam consideradas choráveis e outras não? ”
Em tempos de pandemia, as portas abertas são a do coração
Enfim… “Se todas as portas se fecham, eu lhes abrirei uma”. E realmente uma porta foi aberta e a partir dessa muitas outras se abriram. Em tempos de Pandemia as portas abertas são as do coração. A profecia do Pe. Serra se fundamenta no ideal evangélico de Cristo. Essa é a Missão Oblata no mundo, atuando como “Corpo Congregacional” nas “fronteiras geográficas, existenciais e virtuais” e para além delas, pois acreditamos na “utopia” de uma vida plena. É a própria audácia do Espírito que nos impulsiona na caminhada e na luta de “Viver e deixar viver”. Somente à luz do Redentor conseguiremos enxergar o caminho indicado pelas mulheres que exercem a prostituição e nos deixar inquietar pelas injustiças apresentadas e vividas. Missão Oblata no mundo é anunciar a vida plena, denunciando todas as estruturas que geram ‘violências’, opressão e morte.
Artigo disponível em: https://www.oblatassr.org/rede-oblata-brasil-no-atendimento-as-mulheres-em-tempos-de-pandemia/
Referências:
1 O que é esse “novo normal” do qual todos estão falando? <https://www.moneyreport.com.br/inovacao/afinal-o-que-e-
esse-novo-normal-que-todos-estao-falando/> Aluizio Falcão Filho.
2 Distanciamento social: A natureza agradece. <https://www.limpabrasil.org/2020/04/29/distanciamento-social-
a-natureza-agradece/> Marcela Tosi.
3 Conceito de Ecologia Integral que o Papa propõe em cúpula sobre a Amazônia <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
49914122>. João Fellet – @joaofellet.
4 Senso Comum e justificação da desigualdade. Pg. 41 – 48 – Livro: A RALÉ BRASILEIRA – quem é e como vive. Jessé de Souza.
6 Necropolítica e Coronavirus: Qual é o valor de “algumas” vidas?
<https://dialogospelaliberdade.oblatassr.org/2020/06/05/necropolitica-e-coronavirus-qual-e-o-valor-de-algumas-vidas/> Texto:
Equipe Diálogos pela Liberdade.
7 “Sobe e desce” – termo utilizado para se referir aos hotéis de prostituição da Rua Guaicurus e arredores. Para acessar os hotéis
os homens precisam subir as escadas. Existe uma alta rotatividade de homens, enquanto uns sobem outros descem as escadas.
8 Priscila Mengue, O Estado de S.Paulo – entrevista com Leandro Karnal – < https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,classes-
media-e-alta-enfrentam-o-tedio-ja-as-classes-baixas-enfrentam-fome-diz-leandro-karnal,70003302191>
9 Programas de proteção social e superação da pobreza – concepções e estratégias de intervenção.
<file:///C:/Users/Lucinete/Downloads/TeseDoutorado_Carla_Bronzo%2025%2008%2009%20(1).pdf> Tese de doutorado – Carla
Bronzo;
10 Vulnerabilidade Social – Redes metropolitanas de atendimento a assistência social: possibilidades e perspectivas.
<https://fliphtml5.com/usplb/jfwi/basic>. Governo de Pernambuco.
11 Estado de Exceção <http://petdireito.ufsc.br/wp-content/uploads/2016/01/Estado-de-exce%C3%A7%C3%A3o2.pdf>. Giorgio
Agamben.
12 De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? <https://brasil.elpais.com/babelia/2020-07-10/judith-
butler-de-quem-sao-as-vidas-consideradas-choraveis-em-nosso-mundo-publico.html>
13 Documento XXI Capítulo General 2019 – El Espiritu nos impulsa a transitar cruces y habitar fronteras. Instituto da Irmãs
Oblatas do Santíssimo Redentor.
14 Bíblia Sagrada (Deuteronômio, 30, 19).