Brasil – Um país de olhos vendados para realidade

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O reflexo do negacionismo na vida das mulheres em contexto de prostituição

Em diálogos realizados durante as reuniões virtuais com mulheres assistidas pela Pastoral da Mulher, unidade Oblata em Juazeiro, onde buscamos discutir os impactos da pandemia em suas vidas e no exercício da prostituição, tem sido comum ouvirmos a reprodução de falas tais como: “Estão aumentando o número de pessoas contaminadas e mortos, por que os hospitais e o municípios ganham verbas maiores”, “As pessoas estão morrendo de outras coisas e dizem que é o coranavírus”, “Isso só atrapalha a vida de quem precisa trabalhar”, “tem gente que tem a doença e nem sente nada”.

Negacionismo – uma arma genocida que escolhe as vítimas.

O negacionismo, fenômeno que se caracteriza pela negativa da realidade quando esta causa desconforto ou desmantela relações de privilégios ou poder, tem se espalhado em largas proporções pelo Brasil. Somada à COVID 19, a indiferença diante dos fatos durante a pandemia, contribuiu com o elevado número de mortes.

A máscara que deveria proteger narizes e bocas parece estar sendo colocada acima do aparelho olfativo, sobre os olhos. Há um forte descredito, por uma parte da população, do posicionamento de cientistas, estudiosos, além do jornalismo responsável, que busca alertar acerca dos riscos da contaminação, a necessidade de prevenção e a ineficiência de tratamentos sem comprovações cientificas.

Até o momento, não há uma previsão para o fim da crise sanitária e ideológica que nos assola. A vacina, principal arma capaz de frear a doença, vem sendo estudada e produzida por alguns países. Apesar de não ter nenhuma resposta sólida sobre a sua chegada ao Brasil, é a única esperança de uma parcela da população que não se ilude com a cloroquina e afins. Já a necropolítca¹, assumida pelo Governo, parece não ter prazo para acabar.

A contribuição do governo com a negação da gravidade do fenômeno global que vem sendo a pandemia do novo coronavírus, na maioria das vezes através da fala do próprio gestor Federal em meios de comunicação abertos; acrescido a recusa aos reais científicos por parte do ministério da saúde, que após a troca de dois ministros em um espaço de 5 meses, no momento não tem um representante técnico na pasta, é o maior sinônimo de desresponsabilização estatal perante a mortalidade da população.

O marco de cem mil mortes em decorrência da COVID 19 e o contínuo alto registro de contaminados cotidianamente, parecem não causar mais temor em alguns cidadãos. Em nome muitas vezes do lazer, pessoas estão saindo do isolamento social e descumprindo as orientações dos órgãos de saúde. Shoppings abertos, festas e aglomerações diversas. Outros espaços, como templos religiosos também já abriram as portas e se discute o retorno das aulas presenciais. O grande paradoxo em torno disso, é que não houve controle efetivo da doença. Países europeus e asiáticos, por exemplo, que retomaram a essas atividades, já estavam em um estágio mais avançado de controle. Aqui, sequer temos dados concretos, uma vez que há subnotificação de casos e até mesmo baixa testagem na maior parte das regiões do país.

As fakes news, principais disseminadoras de informações negacionistas atingem sobremaneira as classes sociais mais empobrecidas, com menor acesso a educação e dessa forma, com menor capacidade para pensar criticamente e discernir a veracidade de informações que se propagam globalmente via redes sociais. Não obstante, é também essa classe que vem sendo mais acometida pela doença e representa o maior número de óbitos.

Apesar da grande mídia expor diariamente a pior face da crise, que já havia se instaurado, mas foi reforçada com a pandemia, muitas pessoas tendem a relativizar as informações. Cria-se uma naturalização da morte e da miséria alheia. É evidente que muitas pessoas não têm escolha, a classe que sobrevive do trabalho informal, a exemplo da própria prostituição, não teve o privilégio de se manter em isolamento social. Isso se deve ao baixo alcance das políticas públicas e das ações afirmativas, únicas estratégias possíveis de asseguração do direito a vida para quem depende de atividades diárias e externas para obter renda e garantir o sustento básico dos lares.

A prostituição não parou durante a quarentena

A prostituição continuou acontecendo durante todo esse período, mesmo que com dinâmicas diferenciadas, através do uso da rede digital ou até mesmo ludibriando os órgãos de fiscalização, como apontou uma das mulheres acompanhadas: “estou abrindo o bar no truque², pois as contas tão chegando e nem a esse auxílio eu tive direito”. Em alguns locais públicos, como é o caso do posto Frei Damião em Juazeiro, onde a presença da atividade prostitucional é maciça, segundo algumas mulheres, não houve interrupção do movimento nem de clientes, nem de mulheres nos últimos meses.

A Pastoral da mulher se vê diante dessa conjuntura como ferramenta de elucidação às mulheres, desvelando a realidade e orientando-as, mesmo que na perspectiva da redução de danos. A comunicação com o público permanece sendo realizada pelos caminhos virtuais, considerando que os projetos da Rede Oblata Brasil se apoiam na ciência e ainda não consideram o momento plausível ao retorno das atividades presenciais.

¹Necropolítica é o uso do poder social e político para ditar como algumas pessoas podem viver e como algumas devem morrer. Achille Mbembe, autor de On the Postcolony, foi o primeiro estudioso a explorar o termo em profundidade em seu artigo de mesmo nome. Wikipedia (inglês)

²Segundo explicação da mulher, o “truque” diz respeito a porta entreaberta, as mulheres dentro do local e o acesso a clientes cativos.

Texto de Anna Lícia – Assistente Social – Pastoral da Mulher – Rede Oblata em Juazeiro – BA

Imagem 1 de Yvette W por Pixabay

Imagem 2 de Gerd Altmann por Pixabay

Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais da Pastoral da Mulher – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais. 
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