Prostituição e práticas de saúde – Atuação da Pastoral da Mulher

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A partir do atendimento e acompanhamento a mulheres em contexto de prostituição e vulnerabilidades sociais realizados pela Pastoral da Mulher, unidade Oblata em Juazeiro – BA¹, observamos uma grande demanda de encaminhamentos para a política de saúde. A desinformação a respeito de direitos, e estigmas sociais são os principais fatores que as impedem de adentrarem ao Sistema Único de Saúde – SUS, especialmente no âmbito da promoção e prevenção sob uma ótica integral.

De acordo com dados institucionais, o público assistido pelos projetos da Rede Oblata se caracteriza pelo seguinte perfil: mulheres em contexto de prostituição e pobreza, cis gênero, maiores de idade, com baixa escolaridade e ausência de qualificação profissional, pretas ou pardas e moradoras de regiões periféricas das cidades. Ainda em comum, a maioria está na prostituição por uma questão de sobrevivência e sustento da família.

Embora a saúde das mulheres prostitutas sempre tenha estado entre as principais pautas no que diz respeito à atenção a esse público, ela é, na maioria das vezes, tratada a partir de um viés discriminatório, que direciona atenção apenas para questões relacionadas com a área ginecológica e a prevenção de Infecções sexualmente transmissíveis.

Essa lógica se dá ao fato de que prostitutas estiveram durante muito tempo associadas a vetores de ISTs, sobretudo durante a epidemia de HIV/AIDS nos anos 80, juntamente com categorias como homossexuais e usuários de drogas. Essa ideia se perpetuou no imaginário social, gerando sérios preconceitos, até hoje, em relação a essa população, inclusive dentro dos próprios serviços públicos.

Na perspectiva de superação das barreiras que alimentam o tabu em relação a atividade sexual remunerada, nas últimas décadas, através de associações e coletivos, trabalhadoras sexuais ganharam maior visibilidade no cenário social, a partir de suas próprias reivindicações e lutas pela garantia de direitos. Para Fabiana Rodrigues de Souza (2019), construir autoimagens positivas e modos mais humanizados de perceber a prostituta é um processo educativo, necessário e relevante no sentido de minimizar a violência e violações de direitos que recaem sobre mulheres que se ocupam dessa prática social tão estigmatizada.

Todavia, é notória a falta sensibilidade, acolhimento e interesse da sociedade em geral no processo de quebra desses preconceitos, por vezes alimentados pela moral e por fundamentalismos religiosos, o que corrobora com o processo de exclusão e marginalização desse segmento.

Compreendendo a saúde como um processo resultante de fatores biológicos, sociais, econômicos, culturais e históricos e analisando o perfil das mulheres assistidas pela Rede Oblata, é nítido um processo multifatorial de patologias em vários aspectos da vida. A vulnerabilidade social atravessa suas histórias desde o nascimento e se mantém geração após geração. A falta de acesso a bens e serviços no campo da cidadania e ao mercado de trabalho formal, além dos quadros de violações de direitos aos quais são expostas, se traduzem em um extenso campo que vai de adoecimentos físicos à mentais, que podem ser irreversíveis.

Segundo indicadores da Política de Atenção Integral à Saúde das Mulheres, lançada em 2004 pelo Ministério da Saúde, as populações expostas a precárias condições de vida estão mais vulneráveis e vivem menos. O documento propõe diretrizes para a humanização e a qualidade do atendimento, questões que mesmo quase duas décadas depois, ainda permanecem pendentes na atenção à saúde de muitas mulheres. Nos últimos anos, com a política neoliberal de cortes em investimentos em programas socias – reforçada pelo atual governo, observamos a minimização de ações efetivas nesse âmbito.

A desproteção e não consolidação do que está previsto nos instrumentos legais reverbera em um quadro de acentuação das desigualdades econômicas, sociais e de saúde das mulheres e suas famílias durante todo o ciclo da vida. A dificuldade de acesso a serviços de saúde contribui para que, no mundo, a cada ano, 270 mil mulheres morram de câncer cervical e 225 milhões não tenham acesso ao planejamento familiar. Além disso, uma em cada três mulheres entre 15 e 49 anos sofrem com violência física ou sexual dentro ou fora de suas casas (EVERY WOMAN EVERY CHILD, 2015).

Com efeito, à medida que fortalecemos as relações com o grupo atendido pelos projetos, notamos uma complexidade de necessidades, que vão muito além de queixas sobre a saúde íntima. É importante destacar que, anterior à atividade que desempenham, trabalhadoras sexuais são pessoas e, como quaisquer outras, apresentam contextos de adoecimentos que se desencadeiam ao longo de suas vidas, muitas vezes, antes de iniciarem a vida laboral. Estão sujeitas a condições de enfermidades comuns a toda população, a exemplo da infecção pelo coronavírus, em um debate mais atual.

A prostituição certamente suscita outros fatores específicos, especialmente quando exercida de forma precária, em espaços populares, como ruas, bares e boates clandestinas, onde praticam um trabalho insalubre e mal remunerado, conforme destaca o artigo Violência contra mulheres que exercem a prostituição: Breve mapeamento entre mulheres atendidas pelos projetos sociais das Irmãs Oblatas do santíssimo Redentor (2020).

Nos atendimentos às mulheres, observam-se relatos de prática de muitos programas com parceiros diversos; o não uso eventual de preservativos ou situações em que há rompimento da camisinha durante o ato sexual, o que as expõem a contato com ISTs; situações recorrentes de abortos provocados, somados à pouca higiene e à prática de automedicação. Há bastante desinformação sobre planejamento familiar e saúde sexual. O acesso dessa população à saúde é ainda mais fragilizado frente a discriminação dentro e fora dos aparelhos que compõem o SUS, questões como as dinâmicas e horários de trabalho e de funcionamento dos serviços, e do temor de serem mal atendidas nas unidades.

Para além dessas especificidades, durante a pandemia da Covid-19, constatou-se um aceleramento e intensificação de adoecimentos de ordem psíquica, além das doenças físicas que se sobrepõem simplesmente às demandas no campo ginecológico. Os atendimentos psicológicos realizados de forma virtual e presencial apontam quadros de ansiedade e sintomas de depressão, além de outras doenças. Isso se deu em decorrência de vários fatores, mas, sobretudo, devido ao empobrecimento populacional em geral e o reforço a feminização da pobreza, aumento de conflitos familiares frente às novas formas de convivência social e aos riscos enfrentados para se manterem na prostituição, mesmo diante da possibilidade de contaminação e morte.

Em meio à desassistência estatal, a Pastoral da Mulher tem o campo da saúde como um foco de atuação, mediante o estudo e diagnóstico do contexto do público acompanhado pela instituição. Para isso, muito tem sido investido em práticas que vão desde a prevenção – através de ações socioeducativas – à oferta de atendimentos no campo das práticas integrativas de saúde, atendimento psicológico e encaminhamentos à rede de saúde pública. Esse trabalho só se torna viável a partir da sensibilização de profissionais que compõem a rede municipal a respeito das especificidades do público-alvo.

Ademais de fortalecê-las e orientá-las sobre a importância do autocuidado, aproveitamos o vínculo construído entre equipe e mulheres atendidas para esclarecer os direitos à saúde previstos na Constituição Federal de 1988 e a Lei 8.080/90, enfatizando o acesso igualitário e universal ao SUS e destacando a necessária reivindicação quando este for negado ou prestado de forma indevida. Isso porque acreditamos que a consolidação da cidadania e o alcance aos direitos básicos através da informação são peças fundamentais na construção do protagonismo, autonomia e emancipação das mulheres em exercício da prostituição.

¹ Unidade Oblata em Juazeiro se refere a uma das quatro unidades que compõem a Rede Oblata Brasil: Conjunto de projetos vinculados a Congregação Religiosa das irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor no Brasil que realizam um serviço social e humanitário a mulheres em contexto de prostituição e vulnerabilidade social. 

Referências:

Prostituição: Mudanças, autoimagens, confrontações e violências/ Instituto das irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor – Rede Oblata Brasil (org). São Paulo: Pluralidades, 2020.

Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. – Brasília: Ministério da Saúde, 2004.

EVERY WOMAN EVERY CHILD. Global Strategy for Women’s, Children’s and Adolescents’ Health 2016- 2030. 2015.

Texto: Anna Lícia Brito – Assistente Social – Pastoral da Mulher

Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais da Pastoral da Mulher – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais. 
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